Francisco de Barros Junior
Autor da melhor e maior obra sobre caça no Brasil, Francisco de Barros Júnior foi educado no Colégio Jesuíta de Campolide e em Coimbra.
Muito comuns na Inglaterra desde a era vitoriana, as memórias de aventuras vividas não tiveram a mesma sorte na língua portuguesa, pelo menos até o século XX. Pode-se especular sobre as causas: talvez os leitores de português prefiram a ficção às memórias, ou a educação da maioria dos aventureiros falantes de português deixasse a desejar em relação aos seus colegas de língua inglesa (afinal de contas, quase todos os membros do prestigioso Shikar Club eram ex-alunos de Eton ou Harrow, quando não de Cambridge ou Oxford).
Infelizmente para nós, isso fez com que a nossa literatura sobre caça ficasse relegada a segundo plano, porque para se escrever bem sobre caça não basta apenas ser um grande caçador: é também necessário ser um bom escritor. Em Portugal a situação ainda é bem melhor, pois uma educação mais universal, acessível e de qualidade e um mercado editorial mais democrático permitiu que gente como Henrique Galvão, Abel Pratas, José Pardal (e muitos outros) eternizasse e transmitisse às gerações futuras suas experiências.
No Brasil, pelo contrário, é uma lástima: em geral, caça e literatura não andam juntas. Pouquíssimos caçadores põem suas recordações no papel; a maioria das obras existentes tem uma tiragem mínima e uma publicação obscura, e a triste verdade é que na maioria dos casos o autor tem muito mais afinidade com a espingarda do que com a pena.
Felizmente, houve exceções: Synésio Ascêncio, falecido recentemente, era um homem culto e educado e tinha talento como escritor. Mas por mais que o admire (tive a honra de conhecê-lo pessoalmente) tenho que reconhecer que os melhores livros de caça do Brasil são, de longe, os de Francisco de Barros Júnior. Barros Júnior não era apenas um ótimo atirador e caçador e pescador fanático, mas um homem culto, polímata e principalmente um excelente observador, que sabia como ninguém colocar no papel o que via e sentia.
Em parte isso foi culpa dos portugueses: nascido no dia 14 de dezembro de 1883 em Campinas, Estado de São Paulo, no seio de uma rica família da aristocracia rural brasileira, Francisco Carvalho de Barros Júnior foi mandado ainda criança para estudar no Colégio Jesuíta de Campolide, e dali seguiu para estudos (interrompidos) em Coimbra e na França. Como conseqüência, por toda a vida esse brasileiro (por mais patriota que fosse, e o era no melhor sentido) se exprimiria com... um forte sotaque português. E, de quebra, dominaria com tanta facilidade a última flor do Lácio com a mesma desenvoltura com que disparava a sua inseparável Colt Woodsman.
O Colégio de Campolide abrigava na época a nata da sociedade lusitana, e durante uma visita da Rainha o brasileirinho vindo dos confins foi considerado indigno de participar da cerimônia do beija-mão, tendo sido mandado para o pátio do Colégio, sozinho. Pois Dona Amélia de Orleães viu pela janela a silhueta do menino tristonho e isolado, mandou chamá-lo, colocou-o no colo e acariciou-lhe a cabeça, coisa que marcou o futuro escritor para o resto da vida: ao lembrar-se do fato, comovia-se até as lágrimas.
De volta ao Brasil Barros Júnior tentou a sorte como solicitador e professor de latim na sua terra natal, até empregar-se como representante da Remington/FNL, o que lhe permitiu unir o útil ao agradável: a representação comercial foi um passaporte para o futuro escritor viajar pelo Brasil inteiro e entrar em contato direto com caçadores e pescadores.
E foi o que ele fez por muitos anos, com notável intensidade: Barros Júnior percorreu literalmente o Brasil do Oiapoque ao Chuí, explorando seus mais recônditos recantos. Não eram viagens confortáveis a pontos turísticos de destaque ou a campos de caça já suavizados pelas mãos do homem, mas verdadeiras aventuras a lugares pouco conhecidos e visitados. Percorreu o país de Norte a Sul, de Leste a Oeste, nos mais diversos e às vezes precaríssimos meios de transporte: à cavalo, de automóvel, de carona na boléia de caminhões, à bordo de barcos fluviais (as famosas “gaiolas” e “vaticanos”, veteranas do Mississipi vendidas aos brasileiros), em pequenos vapores de cabotagem, de bote a motor, de canoa, de avião. Caçou desde os pampas do Sul às florestas da Amazônia, passando por todos os ecossistemas do Brasil: o Cerrado, a Mata Atlântica, a Caatinga.
Era um verdadeiro e fanático caçador, que não desprezava ou menoscabava qualquer atividade cinegética: perseguia veados no corso, caçava perdizes e codornas com cães, participava da versão cabocla das montarias, caçava no pio inambus, urus, macucos e jaós. Também pescava, mas quase como uma alternativa quando não fosse caçar. Abateu praticamente todas espécies de interesse cinegético no Brasil, de onças a singelas cutias.
Esse era o Barros caçador; restam o escritor e o naturalista que também habitavam o mesmo corpo. Aparentemente o escritor começou por publicar artigos em jornais como o “Comércio de Campinas”, a “Folha da Manhã” e em revistas especializadas, como a “Caça e Pesca”. Entretanto, só em 1945 – quando o autor já era sessentão – surge o primeiro volume de sua série de maior sucesso, “Caçando e Pescando Por Todo o Brasil”. Entre 1947 e 1952 saem os outros cinco volumes da série, condensados depois em diferentes números de tomos conforme a edição. Os livros foram um considerável sucesso na época e tiveram inúmeras edições; além deles, Barros se aventurou brevemente no terreno da ficção (Tragédias Caboclas, 1955) e, com muito maior sucesso, na literatura infanto-juvenil, com a série “Três Garotos/Três Escoteiros”.
Foi através desta série, aliás, que eu tive meu primeiro contato com Barros Júnior. E sentindo às vezes uma prévia da sensação de caçar na espera, porque eu costumava ocultar o livro dentro da carteira e ficar lendo sub-repticiamente durante as aulas dos meus terceiro e quarto anos do primário, um olho na professora e outro na página. Eram muito bem escritos, bem ilustrados e emocionantes, e numa época onde a qualidade importava mais do que as besteiras politicamente corretas seus livros chegaram a ser comprados em massa pelo governo e distribuídos em escolas públicas.
“Três Garotos / Três Escoteiros” era uma meia ficção, misto de experiências vividas pelo próprio Francisco e seus dois filhos e sobrinhos descendo de barco as principais bacias hidrográficas brasileiras e de boa história de aventuras, com personagens como o dinamarquês Gigante e lances emocionantes como encontros com onças, sucuris e cobras venenosas, passagens de perigosas corredeiras, perdidas na mata, etc. E os personagens não eram mini-adultos precocemente traumatizados como em certas obras de hoje em dia, mas três veros escoteiros de antanho: bravos, leais e destemidos, mas ainda assim crianças.
Mas falemos do principal: a série “Caçando e Pescando” não é simplesmente uma coletânea de narrativas cinegéticas, mas um verdadeiro Atlas escrito do Brasil, um retrato fiel e minucioso do país na primeira metade do Século XX. Entre muitas e boas narrativas de caçadas e pescarias fala-se ali um pouco de tudo: das cidades, dos acidentes do relevo, dos rios, dos tipos humanos, dos bichos. Desses, aliás, fala-se minuciosamente: Barros Júnior se comprazia em identificar cada espécie de ave, mamífero ou peixe, não só os que caçava e pescava como os que encontrava por suas andanças. Tal era o talento desse naturalista amador que seu trabalho inspirou uma recente tese científica, que como só a acontecer em obras dessa natureza tem o comprido título de “A contribuição de Francisco de Barros Jr. ao conhecimento da fauna de vertebrados da região sul do Brasil”.
Para sua sorte, Barros Júnior viveu num Brasil diferente e pode em vida colher vários louros por sua obra: além do sucesso de vendas, “Três Escoteiros em Férias no Rio Paraguai” ganhou em 1961 o mais prestigioso prêmio da literatura brasileira então, o Prêmio Jabuti de Literatura. Barros passou a apresentar um programa semanal sobre caça na Rádio Excelsior de São Paulo, e a apresentar palestras e conferências pelo Brasil. Posteriormente, tornou-se patrono de uma cadeira na Academia Jundiaiense de Letras, hoje ocupada por sua nora, Aparecida Mariano de Barros.
Quem o conheceu ainda se lembra de um homem culto, poliglota e educado mas de simplicidade cativante no trato, de estatura mediana, pele clara e límpidos olhos azuis. Era um atirador exímio, e em suas peregrinações como representante comercial dava shows de tiro atirando diversos objetos para o ar e acertando-os com uma pistola Woodsman .22 antes que caíssem no chão. Outros narram seu desconcertante hábito de caçar e pescar de pijamas; e alguns se recordam de sua paixão pela radiestesia.
Com notável senso de timing, Barros Júnior deixou este mundo no dia 19 de setembro de 1969, lúcido e ativo até o fim.
E por que o timing? Simples: sua partida nessa hora oportuna, quando as coisas ainda eram diferentes, impediu-o de ver sua memória enxovalhada ou deliberadamente negligenciada por imbecis.
É certo que para os padrões atuais Barros Júnior não era um paladino da ética venatória: matava peças demais, atirava de muito longe com calibres pequenos, e cometia (e confessava com honestidade) outros pequenos pecadilhos. Mas são outros tempos, e outros costumes: aposto que se continuasse vivo seria um caçador dos mais éticos.
Mas a hoplofobia e a gritaria dos antis conseguiram banir a série “Caçando e Pescando” das estantes das livrarias; ouvi falar até mesmo de uma mãe que se insurgiu contra a presença de um dos livros dos “Três Escoteiros” numa biblioteca escolar por causa das histórias de caçadas; o pior foi alguém ter lhe dado ouvidos. (Por outro lado, um livro flagrantemente obsceno foi distribuído por engano a escolas primárias de São Paulo e ninguém reclamou até que o próprio autor e a imprensa denunciaram o caso).
Por sorte, ainda existe mesmo por aqui muita gente sensata: não conheço um bom biólogo ou ecologista de verdade que não tenha orgulho de sua cópia vetusta e coçadinha de “Caçando e Pescando”. O mais ilustre é Cláudio Valladares Pádua, Whitley Prize (o “Oscar” da ecologia, da Royal Geographic Society) de 1999.
Mas as cópias vão ficando mais raras e mais coçadas: a última edição de “Caçando e Pescando” é, salvo engano, de 1980. Nem as vinte e oito mil entradas no Google à procura da obra convencem algum editor a reeditar essa obra magistral, que é muito mais do que uma série sobre caçadas, mas também um compêndio de história ambiental, história do Brasil e uma aula de verdadeiro patriotismo.
Se por um lado os livros da série não são tão difíceis de encontrar (foram muitas edições, e algumas reimpressões), achar a série completa é praticamente impossível, e está cada vez mais difícil encontrar algum exemplar intacto (o único que consegui mandei para Mestre Pardal, que mais que merece). E a memória de Francisco de Barros Júnior também vai lentamente se apagando: só recentemente uma alma caridosa (que aparentemente o conheceu em vida) lembrou-se de colocar uma minibiografia dele na Wikipédia. Como todos os seus filhos são falecidos, cada vez haverá menos gente a revelar fatos e segredos sobre o homem; o autor, felizmente, ficou imortalizado nos seus livros.